São delicados e sutis os fios da harmonia. Ao contrário da alegria, do
entusiasmo, ela é uma das sensações mais discretas. Sua voz é quase
imperceptível, feito outra qualidade de silêncio. Ela não é uma gargalhada, é
aquele sorriso por dentro, uma sensação gostosa de estar no lugar certo, na
hora adequada. Feito um arco-íris depois da tempestade, sua beleza é adornada
pelo equilíbrio dentro do derramamento. É um adestramento dos fantasmas
internos. A possibilidade de aprimorar os pensamentos. É quase como não pensar.
Simplesmente, sentimos uma ligação profunda com tudo, um denso bem-estar. Como
se tivéssemos uma secreta intimidade com o mundo, certa cumplicidade com o
tempo. É como se observássemos descompromissados, ela é uma descontração. Como
se o coração batesse pelo corpo todo, mas sem extremada euforia. Uma
tranqüilidade dilatada no peito, o olhar satisfeito, a mente entendendo que já
nem precisa entender o que é prosa ou poesia. E o mundo inteiro cabendo num
abraço. E uma firmeza na carícia, a maturidade que perdeu o cansaço, uma
confiança que preenche a existência. A harmonia é um contato profundo com a
experiência. E o tempo do dia não é mais composto por esperas, ele é vivido. E
já não se fala, palavras passeiam pela boca. E já não se escreve, as frases
coreografam as paisagens. E já não se ama, o amor vigora em nós. A harmonia tem
fios muito delicados e sua trama faz a ligação mais suave entre todas as
urgências já sentidas. E o chão do sonho é macio, e tudo parece estar
alinhavado, numa ligação sem sufocamentos. E a poesia não deseja mais ser nada,
vira o afago de um momento. E nas letras a textura de um veludo, como se ao
correr pela página, os olhos pudessem ser acariciados. E você tem todas as
coisas sem precisar tomar posse delas. Você ama o amor, não o delírio de estar
apaixonado. Sinto a harmonia como uma espécie de fascínio pela vida. É quase
uma perda de outros apetites, porque se está tão nutrido pela própria
companhia. E a gente tem aquela vontade súbita de andar pela noite: não apenas
para olhar as estrelas, mas também para por elas sermos vistos.
Harmonia é como se fôssemos inundados pelo mar onde antes só havia um
precipício."
Marla de Queiroz
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